
O pesadelo Americanas
Há poucos dias a ProFit realizou um seminário sobre Governança Corporativa e o vexame Americanas foi mencionado diversas vezes. Nesta semana o Instituto Brasileiro de Governança Corporativa – IBGC apresentou uma palestra com o tema Escândalos corporativos: o que a governança precisa fazer.
Em retrospectiva, o problema começou em 11 de janeiro, quando a empresa divulgou um “fato relevante” – comunicação prevista pela Comissão de Valores Imobiliários –CVM – informando que havia identificado inconsistências em lançamentos contábeis, valor que chegaria a R$ 20 bilhões, com a renúncia do novo presidente, empossado no começo do ano.
A questão contábil, até agora, consistiria na classificação de dívidas bancárias como contas a pagar a fornecedores. Trata-se de uma interpretação favorável à empresa, que assim não demonstrava seu endividamento oneroso, maquiando compromissos com juros como simples transações comerciais. Seguiram-se inúmeros processos que resultaram na oficialização da recuperação judicial, antiga concordata, que faz uma barreira temporária das ações dos credores.
A Americanas usufruía de bom prestígio empresarial e crédito bancário, inclusive porque seus acionistas de referência são três das maiores fortunas do Brasil, o que constituía uma segurança adicional num sistema jurídico respeitável.
Vamos pelo princípio: a Constituição Federal no Art. 5º estabelece o direito à propriedade, na mesma linha de importância do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança, mas reforça, em seu inciso XXIII, que a propriedade atenderá à sua função social, o que é um tanto vago, mas aplica-se ao caso.
A Americanas é uma empresa com ações e debêntures negociadas junto ao público, fato que preocupa pela lesão aos interesses da economia popular, não se trata somente de grandes investidores. É uma empresa com um quadro de mais de 40 mil colaboradores, além de uma relação de 15 mil fornecedores, desde gigantes multinacionais a empresas pequenas e médias.
Está em discussão até que ponto a acrobacia contábil era do conhecimento do Conselho de Administração e de seus acionistas, levando em conta que as sucessivas auditorias internacionais não conseguiram perceber a manobra. Muitos analistas de mercado e de crédito haviam, entretanto, percebido um estranho aumento na conta fornecedores. A diretoria, com base nos resultados contábeis, recebeu diversos bônus pelos resultados que publicava, levando os credores de boa-fé a entender que tudo funcionava sem problemas.
Nas tramas policiais, a expressão “follow the money” (siga o dinheiro) sugere que, num esquema de fraude, o dinheiro deixa rastros que muitas vezes levam até aos altos administradores ou acionistas.
Hierarquicamente abaixo da Constituição, está o Código Penal, onde se configura o crime omissivo, que ocorre quando o agente não faz o que pode e deve fazer. Um salva vidas que vê um afogamento e não presta socorro está enquadrado neste caso: o crime omissivo consiste na omissão de uma determinada ação que o sujeito tinha obrigação de realizar e que podia fazê-lo; esta é uma hipótese que beneficia os administradores e acionistas, se não houve a determinação de fazer a classificação contábil criativa.
Surpreende, no momento, o desamparo da comunidade empresarial, dos funcionários, fornecedores e credores, face a uma omissão das autoridades federais, considerando que a Comissão de Valores Mobiliários – CVM é uma autarquia vinculada ao Ministério da Fazenda.
Ficamos, além de esperar do governo uma manifestação proporcional ao problema, na expectativa de que os acionistas da Americanas atentem para o referido inciso XXIII da Constituição Federal sobre a função social da propriedade.
Se não for por esta postulação, acreditamos que os acionistas queiram restabelecer o então bom nome que tiveram até aqui, ressaltando que são autores do livro “Sonho Grande”, subtítulo “como revolucionaram o capitalismo brasileiro e conquistaram o mundo”; nós, leitores ocasionais, não sabíamos que o sonho do trio seria um pesadelo do qual ainda não acordamos.